terça-feira, abril 15

Retrato de Francisco

Vou, pois, começar, Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo, por escrever o que o bom Deus me queira fazer lembrar do Francisco. Espero que Nosso Senhor lhe faça conhecer, no Céu, o que a seu respeito escrevo na terra, para que, junto de Jesus e Maria, interceda por mim, em especial nestes dias.

A amizade que me unia ao Francisco era apenas a de parentesco (*) e a que consigo traziam as graças que o Céu se dignava conceder-nos.

O Francisco não parecia irmão da Jacinta senão nas feições do rosto e na prática da virtude. Não era, como ela, caprichoso e vivo; era, ao contrário, de natural pacífico e condescendente.

Quando, nos nossos (jogos) e brincadeiras, algum se empenhava em negar-lhe os seus direitos por ter ganhado, cedia sem resistência, limitando-se a dizer apenas:

— Pensas que ganhaste tu? Pois sim! A mim isso não me importa.

Não manifestava, como a Jacinta, a paixão pela dança; gostava mais de tocar o pifarito, enquanto os outros dançavam.

Nos jogos, era bastante animado, mas poucos gostavam de jogar com ele, porque perdia quase sempre. Eu mesma confesso que simpatizava pouco com ele, porque o seu natural pacifico excitava, por vezes, os nervos da minha demasiada vivacidade. Às vezes, pegava-lhe por um braço, obrigava-o a sentar-se no chão ou em alguma pedra, mandava-lhe que estivesse quieto e ele obedecia-me, como se eu tivesse uma grande autoridade. Depois, sentia pena, ia buscá-lo pela mão e vinha com o mesmo bom humor, como se nada tivesse acontecido. Se alguma das outras crianças porfiava em tirar-lhe alguma coisa que lhe pertencesse, dizia:

— Deixa lá! A mim que me importa?

Recordo que chegou, um dia, a minha casa com um lenço do bolso, com Nossa Senhora de Nazaré pintada, que dessa praia acabavam de lhe trazer. Mostrou-mo com grande alegria e toda aquela criançada o veio admirar. De mão em mão, a poucos instantes, o lenço desapareceu. Procurou-se, mas não se encontrava. Pouco depois, descobri-o no bolso dum outro pequeno. Quis-lho tirar, mas ele porfiava que era dele, que também Iho tinham trazido  da praia. Então, o Francisco, para acabar com a contenda, aproximou-se, dizendo:

— Deixa-o lá! A mim que me importa o lenço?

Parece-me que, se houvesse crescido, o seu defeito principal seria o de não-te-rales.

Quando, aos 7 anos, comecei a pastorear o meu rebanho, ele pareceu ficar indiferente. Lá ia, à noite, esperar-me com a sua irmãzinha, mas parecia ir mais para lhe fazer a vontade que por amizade. Iam esperar-me no pátio de meus pais. E enquanto a Jacinta corria a meu encontro, logo que sentia os chocalhos do rebanho, ele esperava-me sentado nuns degraus de pedra que havia em frente da porta de casa. Depois, lá ia connosco, para a velha eira, a brincar, enquanto esperávamos que Nossa Senhora e os Anjos acendessem as Suas candeias. Animava-se também a contá-las, mas nada o encantava tanto como o lindo nascer e pôr-do-sol. Enquanto deste se avistava algum raio, não investigava se já havia alguma candeia acesa.

— Nenhuma candeia é tão bonita como a de Nosso Senhor – dizia ele à Jacinta que gostava mais da de Nossa Senhora, porque, dizia ela, não faz doer a vista.

E entusiasmado seguia com a vista todos os raios que, dardejando nos vidros das casas das aldeias vizinhas ou nas gotas de água espalhadas nas árvores e matos da serra, (os) faziam brilhar como outras tantas estrelas, a seu ver mil vezes mais bonitas que as dos Anjos.

Quando, com tanta insistência, pediu à mãe que o deixasse ir com o seu rebanho para andar comigo, era mais bem por fazer a vontade à Jacinta que gostava mais dele que de seu irmão João. Um dia que a mãe, já pouco contente, lhe negava essa licença, respondeu com a sua paz natural:

— A mim, minha Mãe, pouco me importa. A Jacinta é que quer que eu vá.

Em outra ocasião, confirmou isto mesmo. Veio a minha casa uma das minhas antigas companheiras convidar-me para ir com ela, pois tinha, para esse dia, uma boa pastagem. Como o dia se apresentava fosco, fui a casa de minha tia perguntar se ia o Francisco com a Jacinta ou se ia seu irmão João, porque, no caso de ir este último, preferia a companhia da outra antiga companheira. Minha tia tinha já decidido que, aquele dia, por estar de chuva, ia o João. Mas o Francisco quis ir ainda junto da mãe fazer uma nova insistência. Ao receber um não, seco e sacudido, respondeu:

— A mim, tanto me dá. A Jacinta é que tem mais pena.

(*) A mãe do Francisco e o pai de Lúcia eram irmãos.


LÚCIA DE JESUS, Irmã Maria (1973). Memórias da Irmã Lúcia I. 13ª edição. Fátima: Secretariado dos Pastorinhos, 2007. p137-139.

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I am like a freight train. Working on the details, twisting them and playing with them over the years, but always staying on the same track. People who exhibit unhealthy perfectionism are fearful of failure, fearful of criticism.

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