domingo, junho 1

Retrato de Jacinta

Minha mãe costumava, ao serão, contar contos. E entre os contos de fadas encantadas, princesas douradas, pombinhas reais, que nos contavam meu pai e minhas irmãs mais velhas, vinha minha mãe com a história da Paixão, de S. João Baptista, etc., etc.

Eu conhecia, pois, a Paixão de Nosso Senhor como uma história; e como me bastava ouvir as histórias uma vez para as repetir com todos os seus detalhes, comecei a contar aos meus companheiros, pormenorizadamente, a história de Nosso Senhor, como eu Ihe chamava. Quando minha irmã (8), ao passar por junto de nós, se dá conta que tínhamos o crucifixo (**) nas mãos, tira-no-lo e repreende-me, dizendo que não quer que toque nos santinhos. A Jacinta levanta-se, vai junto de minha irmã e diz-lhe:

— Maria, não ralhes! Fui eu, mas não torno mais.

Minha irmã fez-lhe uma carícia e disse-nos que fôssemos a brincar lá para fora, dizendo que em casa não deixávamos parar nada no seu lugar.

Lá fomos contar a nossa história para cima do poço de que já falei e que, por estar escondido detrás duns castanheiros, dum monte de pedras e dum silvado, havíamos de escolher, alguns anos depois, para cela dos nossos colóquios, de fervorosas orações e, também, Ex.mo Rev.mo Senhor, para dizer-vos tudo, também de lágrimas, por vezes bem amargas. Misturávamos as nossas lágrimas às suas águas, para bebê-las depois, na mesma fonte onde as derramávamos. Não seria essa cisterna a imagem de Maria, em cujo Coração enxugávamos o nosso pranto e bebíamos a mais pura consolação?

Mas voltando à nossa história:

Ao ouvir contar os sofrimentos de Nosso Senhor, a pequenina enterneceu-se e chorou. Muitas vezes, depois, pedia para Iha repetir. Chorava com pena e dizia:

— Coitadinho de Nosso Senhor! Eu não hei-de fazer nunca nenhum pecado. Não quero que Nosso Senhor sofra mais.

(*) Maria dos Anjos, a irmã mais velha de Lúcia (†1986).
(**) Ainda hoje os visitantes podem ver este Crucifixo na casa da Lúcia.


LÚCIA DE JESUS, Irmã Maria (1973). Memórias da Irmã Lúcia I. 13ª edição. Fátima: Secretariado dos Pastorinhos, 2007. p173-176.

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I am like a freight train. Working on the details, twisting them and playing with them over the years, but always staying on the same track. People who exhibit unhealthy perfectionism are fearful of failure, fearful of criticism.

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