Retrato de Jacinta
Minha mãe costumava, ao serão, contar contos. E entre os contos de fadas encantadas, princesas douradas, pombinhas reais, que nos contavam meu pai e minhas irmãs mais velhas, vinha minha mãe com a história da Paixão, de S. João Baptista, etc., etc.
Eu conhecia, pois, a Paixão de Nosso Senhor como uma história; e como me bastava ouvir as histórias uma vez para as repetir com todos os seus detalhes, comecei a contar aos meus companheiros, pormenorizadamente, a história de Nosso Senhor, como eu Ihe chamava. Quando minha irmã (8), ao passar por junto de nós, se dá conta que tínhamos o crucifixo (**) nas mãos, tira-no-lo e repreende-me, dizendo que não quer que toque nos santinhos. A Jacinta levanta-se, vai junto de minha irmã e diz-lhe:
— Maria, não ralhes! Fui eu, mas não torno mais.
Minha irmã fez-lhe uma carícia e disse-nos que fôssemos a brincar lá para fora, dizendo que em casa não deixávamos parar nada no seu lugar.
Lá fomos contar a nossa história para cima do poço de que já falei e que, por estar escondido detrás duns castanheiros, dum monte de pedras e dum silvado, havíamos de escolher, alguns anos depois, para cela dos nossos colóquios, de fervorosas orações e, também, Ex.mo Rev.mo Senhor, para dizer-vos tudo, também de lágrimas, por vezes bem amargas. Misturávamos as nossas lágrimas às suas águas, para bebê-las depois, na mesma fonte onde as derramávamos. Não seria essa cisterna a imagem de Maria, em cujo Coração enxugávamos o nosso pranto e bebíamos a mais pura consolação?
Mas voltando à nossa história:
Ao ouvir contar os sofrimentos de Nosso Senhor, a pequenina enterneceu-se e chorou. Muitas vezes, depois, pedia para Iha repetir. Chorava com pena e dizia:
— Coitadinho de Nosso Senhor! Eu não hei-de fazer nunca nenhum pecado. Não quero que Nosso Senhor sofra mais.
(*) Maria dos Anjos, a irmã mais velha de Lúcia (†1986).
(**) Ainda hoje os visitantes podem ver este Crucifixo na casa da Lúcia.
LÚCIA DE JESUS, Irmã Maria (1973). Memórias da Irmã Lúcia I. 13ª edição. Fátima: Secretariado dos Pastorinhos, 2007. p173-176.
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